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ARTE POPULAR
Apesar da inevitável contaminação de culturas, a Arte Popular é entendida como representação individualizada de uma colectividade ou de um grupo determinado – social, económico ou cultural. Da mesma forma que na arte dita primitiva, as criações são normalmente produzidas por autodidactas, sem qualquer formação académica, e são transmitidas de geração em geração.
Opõe-se à arte erudita, pelo seu fácil acesso e baixo custo, mas também pelos temas abordados, que têm quase sempre como referência o imaginário popular, onde o sagrado e o profano estão em permanente confronto.
Da criação artística ao artesanato, a distância é curta e nem sempre perceptível. É a marca de identidade e a passagem do tempo que distinguem o artista popular do artesão. Só é considerado mestre aquele que é assim aceite tanto pelos críticos de arte, quanto pelos seus pares.
Os diabos de Júlia Côta, Rosa Ramalho e Mistério.
CÉU, INFERNO E ALGURES NO MEIO
Excertos do livro “Heaven, Hell and Somewhere In Between – Portuguese Popular Art”, de Anthony Alan Shelton (2015, MOA)
«A Arte Popular expressa a paixão e o entusiasmo que emanam da imaginação rica e das experiências sociais, políticas e religiosas dos seus criadores. Em Portugal, esta arte do povo também tem sido útil para transmitir visões profundamente arraigadas e idealistas da identidade, história e carácter nacional.
Grande parte da arte popular portuguesa centra-se em três lugares altamente imaginados: o Paraíso (o mundo dos santos, da graça e da salvação); o Inferno (o domínio do Diabo, da distopia, do aborrecimento e da travessura); e Algures No Meio (um país chamado Portugal, cujo povo se debate com o bem e o mal todos os dias, desde há séculos). A arte popular portuguesa evoca e dá forma à história, aos acontecimentos contemporâneos, às crenças religiosas autorizadas e populares e ao avança-e-recua das poderosas mas ambíguas relações de Portugal com o mar e a terra. […]
Complexo, contemporâneo, dramático, político e muitas vezes controverso, este é o teatro de uma nação, onde as ideologias oficiais chocam com a arte e a cultura locais, e expelem emoções profundas, do êxtase e transcendência ao sofrimento e penitência. […]»
«A cerâmica figurativa do norte de Portugal “nasceu de um mundo tendencialmente feminino”. Nos séculos XIX e XX as mulheres ocuparam uma posição socialmente silenciosa num país que, durante grande parte do século passado, o Estado Novo tentou ainda mais domesticar. Dentro dessa quietude, mantida desde 1926 pela censura, intimidação e medo patrocinados pelo Estado, as mulheres sofreram um mutismo adicional, mais antigo, imposto pelas relações assimétricas de género há muito estabelecidas.
A religião e a política sob o Estado Novo eram domínios principalmente patriarcais. Normalmente, apenas os homens se tornavam membros das irmandades e comissões que cuidavam dos santos locais e planeavam as suas procissões cerimoniais e dias de festa, e frequentemente apenas os homens tinham o direito de representar as suas famílias nas reuniões paroquiais. A propriedade de uma mulher, após o casamento, geralmente passava para o seu marido. Sem propriedades, esperava-se que a mulher ajudasse o marido no trabalho agrícola, cuidasse da horta, se dedicasse à religião, fosse uma boa esposa e mãe e organizasse o lar. […]
No caso dos ceramistas, essas mentalidades baseadas no género eram expressas através de produtos úteis com valor. As obras utilitárias eram sempre feitas por homens, enquanto os bonecos ou figuras de fantasia, sem valor prático, eram feitos por mulheres. Estas qualidades eram a base da unidade económica familiar e estabeleciam uma harmonia idealizada no meio rural. […]
O mundo das mulheres portuguesas era um mundo interior – de confinamento caseiro e mental – que em muitos lugares, poucas transpunham. Nesse mundo silencioso, a ceramista Rosa Ramalho (1888-1977) foi uma das poucas mulheres a expressar a sua rica criatividade imaginativa. Houve ceramistas notáveis antes dela, entre as quais a conhecida Maria dos Cacos, que fez e vendeu obras figurativas na zona das Caldas da Rainha de 1820 a 1853, mas foi Rosa Ramalho quem melhor revelou a rica criatividade, o irrequieto jogo de pensamento e imagens e a singularidade de uma imaginação feminina expressa mais pelo jogo das mãos do que pelas sílabas da voz. […]
Com António Quadros Ferreira como mentor, a obra de Ramalho veio a ser reconhecida, tanto pelo Estado como pelo público, como a personificação dos elementos quintessenciais intrínsecos a uma identidade artística portuguesa distinta. Rosa Ramalho foi talvez o maior expoente de grande parte do corpo de formas que ainda hoje emoldura a obra figurativa de Barcelos. […]»
A figuração de Cristo na Arte Popular Portuguesa (Rosa Ramalho, Mistério, José Maria Rodrigues).
«Tendo em conta o forte apoio do Estado Novo à Igreja e a sua função estratégica na criação de uma moral cristã vigorosa e de uma missão apostólica, a importância dos temas religiosos na arte popular não é surpreendente. No entanto, figuras grandes de Cristo e de santos não se tem conhecimento de que tenham sido feitas em Barcelos antes das décadas de 1950 e 1960. Muitos dos santos moldados ou enfeitados em Barcelos são centrais para a religião popular e institucional portuguesa, sendo raras as representações de santos locais ou de santos mais obscuros. […]
Todas as barreiras e convenções que, na religião instituída, separam a congregação da presença de Deus, da Sagrada Família e dos santos, foram dispensadas nestas peças de cerâmica para que no espaço doméstico haja contiguidade, semelhança e familiaridade entre o divino e o quotidiano; entre santos e humanos; entre o comportamento e os valores de personagens comuns e sobrenaturais; e entre o reino do Céu e o mundo temporal.
Tais valores comuns podem ser comparados à revelação espiritual que ligava a divindade à essência da identidade portuguesa sob a orientação do Estado Novo e de governos posteriores, mas o argumento não é totalmente persuasivo. Na arte popular contemporânea, a obra do espírito foi subvertida; em vez de se constituir entre Igreja e Estado, foi apropriada e transfigurada por artistas como Rosa e Júlia Ramalho; Manuel, Francisco e Domingos Mistério; Júlia Côta; os Baraças e Zé Augusto [barrista de Aveiro].
As esculturas de cerâmica destes artistas sugerem que santos e pessoas comuns partilham valores comuns de bondade, amabilidade e humildade. Isto é algo muito distante da imagem ortodoxa dos santos: seres transcendentais, institucionalmente alienados, separados da experiência comum por uma linha de falha que valoriza as ambições apostólicas e milenares sobre as do lar e do trabalho quotidiano. Isto é arte para este mundo e para o presente, não para um outro mundo imaginado em algum futuro indeterminado. […]»
A evolução da figura Carrôcho, uma criação da família Ramalho (Rosa, Júlia e António).
«Tanto o Estado Novo como a Igreja defendiam valores absolutos do bem e do mal, em que o bem político e as aspirações nacionais complementavam a graça religiosa e seguiam a vontade e o destino divinos. Esse absolutismo moral, que durou mais do que a estrutura política que o sustentava, exerceu uma influência penetrante na arte popular, concentrando-se nas representações do bem e do mal como temas principais. […]
Na maioria das vezes, as imagens contemporâneas do Diabo na cultura popular representam-no como uma personagem não ameaçadora, quase de escárnio. Essas figuras são sempre pintadas em vermelho e preto, às vezes com outras cores acrescentadas. Os seus traços vão desde ligeiramente ferozes ou ameaçadores – como os bustos e as figuras moldados por Domingos, Francisco e Manuel Esteves Lima [Mistério], semelhantes aos de Júlia Côta – até criaturas quase cativantes, como as de Nelson Oliveira, que retratam o Diabo e a sua família com rostos infantis, bochechas rechonchudas, olhos arregalados e corpos arredondados e desajeitados. […] O universo de criaturas sobrenaturais e maravilhosas que constituem grande parte da obra do bestiário da família Ramalho fornece um exemplo interessante de como este dualismo fortemente polarizado e oposicional, promulgado pelas instituições estatais e eclesiásticas, foi mediado pela criatividade artística individual. […]
Na sua provocação de furor imaginativo, mesmo quando pretendida apenas como alegoria, Os Lusíadas rivalizam com a Bíblia como fonte do maravilhoso. Juntos, os dois textos oferecem a possibilidade de diferentes estratégias interpretativas, híbridas ou alegóricas, que vai desde o seu potencial de complementaridade, em que mundos de imagens podem ser elididos juntamente, até iconografias alternativas que expressam mundos diferentes, ainda que relacionados. A disseminação da Bíblia e d’Os Lusíadas por uma população em massa no século XX proporcionou um universo imaginativo mais rico para inspirar a obra de artistas populares do que o disponível para os seus precursores do século XIX. […]
Grande parte da arte popular portuguesa do século XX foi uma arte de nostalgia – uma idealização de um mundo que só se pode imaginar através das memórias de família e da reprodução de assuntos e temas iniciados pelas gerações passadas e filtrados por uma tradição literária e religiosa específica. Essas memórias, no entanto, raramente remontam a mais de um século e situam firmemente o seu início no período republicano ou na ditadura. A representação do bem e do mal, longe de ser transcendente e eterna, pertence a um tempo e lugar específicos. […]»
Máscaras de rituais de Inverno transmonstano.
«O Diabo é frequentemente representado em mascaradas representadas durante as celebrações do dia de Santo Estêvão, que coincidem com o Equinócio de Outono e o Solstício de Inverno. Nestes contextos, a máscara, o traje e as acções de Diabo identificam-no como o senhor do arauto do mal, com uma iconografia que coincide com as escrituras e a mitologia mais antiga já descrita. […]
As máscaras e mascaradas demoníacas que surgem entre 25 e 26 de Dezembro limitam-se na sua maioria a Trás-os-Montes, em tempos a parte mais isolada do norte de Portugal. Já não são utilizadas apenas pelos rapazes para caracterizar as suas cerimónias de passagem à idade adulta, conhecidas em diferentes aldeias como festas dos rapazes ou festas dos caretos, mas agora também em performances que em muitos casos incluem raparigas, crianças e homens mais velhos, que se estão a tornar em espectáculos e emblemas da identidade local e regional. As máscaras são feitas de madeira ou de metal – menos frequentemente, de couro, cartão ou plástico – e são envergadas com um dos dois tipos de fatos, usados nessa região, durante as celebrações do Natal ou do Carnaval.
Em Grijó de Parada, Torre da Dona Chama, Varge e Aveleda, quatro aldeias próximas da cidade de Bragança, as máscaras são normalmente feitas de metal e não trazem nenhuma das inovações escultóricas encontradas nas máscaras de madeira de Ousilhão [ou Lazarim]. Mas por causa da sua semelhante ambiguidade moral, funcionam com o mesmo propósito, independentemente de terem iconografias elaboradas ou simples. Em performances ligadas à festa de Santo Estêvão, o Diabo inaugura o período de anti-estrutura, durante o qual o corpo social e as relações sociais-divinas – de que dependem a vida e o bem-estar – são temporariamente desnudados e expostos pela sátira, indiscrição, folia e comportamento obsceno, findo o qual tudo seja rapidamente contido e o compromisso com a ordem social seja reconfirmado.
O Diabo aparece também no Carnaval, que, ao contrário da festa de Santo Estêvão, é marcado por celebrações em todo o país nas semanas anteriores ao feriado católico da Quaresma. No Carnaval, são igualmente invertidas as relações sociais e os modos de comportamento, reiterando-se a identificação do demoníaco com a anti-estrutura e reconvocando-se a utilização de algumas das máscaras e dos trajes já descritos.»
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Anthony Alan Shelton é antropólogo, escritor, curador, educador, gestor e crítico. Originário da Grã-Bretanha, ele é especialista em Museologia, Crítica Cultural e Antropologia da Arte e Estética. Com mais de 30 anos de experiência em ensino, curadoria e gestão, o Prof. Shelton já exerceu cargos no British Museum, no Horniman Museum, no Brighton Museum & Art Gallery, na University College London, na Universidade de Coimbra (Portugal) e no UBC Museum of Anthropology (Canadá).
www.anthonyalanshelton.com
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