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ARTE PRIMITIVA
É também conhecida como Arte Tribal, Art Premier, Arte Etnográfica ou Arte não-Ocidental. Na sua forma mais básica e menos contaminada, é a expressão artística que mais se aproxima da essência humana, impenetrável ao discurso racional e acessível somente pela via do sensível.
Caracteriza-se pelo anonimato em termos de autoria, sacrificando o artista a atenção individual em prol da comunidade a que pertence, num processo continuado de construção e afirmação de uma identidade através da arte que é criada. Nesta, destacam-se os elementos da tradição popular de uma certa sociedade, organizada normalmente num modelo tribal, estando, por isso, quase sempre ligada aos domínios do ritual, da religião e da magia. De uma forma geral, esses artistas são autodidactas e desenvolvem eles mesmos as ferramentas e as técnicas que utilizam no seu trabalho. São consideradas artes primitivas as artes pré-colombianas (Maia, Olmeca), a arte africana tradicional, a arte inuit (povos esquimós), a arte ameríndia (povos autóctones da América do Norte), a arte asiática tradicional e a arte da Oceânia (Melanésia, Micronésia, Papuásia), em especial a dos aborígenes australianos. No início do séc. XX, com o advento do movimento modernista, as criações primitivas passaram a fazer parte do número de objectos artísticos coleccionáveis, sujeitos a sistematização, a contemplação e a exibição, gerando mesmo um mercado de arte e funcionando como fonte de renovação para os vanguardistas da época.
Máscaras rituais de povos africanos, inuit, ameríndios, oceânicos e asiáticos.
ENTENDER A ARTE TRIBAL: DA CRIAÇÃO À APROPRIAÇÃO
A partir dos textos “Understanding Tribal Art” (Frederic Godward, 2016) e “African Sculpture from The Collection of The Society of African Missions” (William Siegman, 1980)
«O conceito de Arte Tribal é um dos temas mais polémicos no círculo das artes. Outro nome pela qual é referida – Arte Primitiva – evoca mitos de superioridade colonial, supremacia da cultura ocidental e um olhar para as obras de outras culturas como intrinsecamente inferiores, para serem apenas observadas como uma curiosidade, um produto de uma sociedade subdesenvolvida. Todavia, a influência que a Arte Tribal teve sobre os artistas ocidentais nos séculos XX e XXI foi tão grande – dando origem a uma infinidade de novos movimentos e formas de expressão –, que não pode ser negligenciada, nem vista como inferior.
Ainda assim, a ideia do bom selvagem [noble savage] não é nova. O seu início pode ser traçado até ao Renascimento. Durante esse tempo, surgiu a noção de Arcádia, um conceito de utopia enraizada no passado, numa Terra do Nunca vagamente clássica, onde o homem vivia em harmonia com a natureza. Tornou-se numa expressão poética para uma visão idílica de uma natureza selvagem intacta. Mais tarde, evoluiu para uma imagem idealizada do cavalheiro por natureza (nature’s gentleman), um aspecto do sentimentalismo do século XVIII. Os índios americanos e os montanheses escoceses, assim como várias tribos de África, desempenhavam o papel (que os franceses chamavam) de bon sauvage nas mentes dos cidadãos educados da Europa Ocidental.
Até à década de 1960, a Arte Tribal era abordada principalmente a partir de uma perspectiva puramente formalista – analisando e comparando apenas a forma e o estilo, sem muita consideração pelo contexto histórico, pelo simbolismo ou pela intenção do artista. Felizmente, com o advento do pós-modernismo, isso mudou e as várias colecções dos museus de História Natural e Etnográfica do Ocidente estão a ser reavaliadas e vistas sob uma nova luz. […]»
Figuras ritual dos povos Zande, Hopi e Kongo.
«Ao contrário da arte das sociedades ocidentais, a arte tradicional africana é uma parte funcional e necessária da vida quotidiana e é impossível entender as culturas de África sem entender as suas artes. Religião, governo, educação, trabalho e entretenimento estão todos intimamente relacionados nas sociedades africanas tradicionais. Todas as artes, sejam elas a música, a literatura oral ou a escultura, estão profundamente entrelaçadas no próprio tecido da vida social e desempenham um papel central na união de todos os membros de cada comunidade por meio de actividades corporativas.
A escultura ocupa um lugar de destaque nos rituais religiosos, que são uma força central na vida africana, dando coesão social por meio da crença comum e da participação na vida cerimonial. No entanto, as máscaras e figuras usadas em tais ritos não são adoradas. Em vez disso, acredita-se que o mundo é habitado por muitos espíritos invisíveis, cada um com os seus próprios poderes e personalidades. Esses espíritos envolvem-se na vida dos seres humanos de muitas formas, tanto pelo bem como pelo mal. As figuras ou as máscaras são os veículos pelos quais esses espíritos se fazem ver e tornar a sua presença notada no mundo dos homens. Os objectos, porém, não incorporam ou contêm o espírito e por isso, embora respeitados e honrados, não são alvo de adoração.
A escultura africana ainda é algo novo e desconhecido para a maioria das pessoas, apesar de ser um produto de civilizações antigas e de muitos séculos de tradição artística. Inicialmente, as máscaras e as figuras podem parecer estranhas ou mesmo grotescas, mas quando apreciadas nos termos das suas próprias culturas, podem ser vistas como sofisticadas, poderosas e dinâmicas. […]»
Estúdios de Pablo Picasso e André Breton, com obras de Arte Primitiva.
«Por volta do final do século XIX, em França, enquanto as noções de superioridade da “arte erudita” desapareciam, uma nova geração de artistas surgiu com o fim de absorver as influências da arte tribal, reinventando completamente a linguagem visual da sua época. Pegaram em imagens das culturas não ocidentais, da arte popular e da naïf e, por meio da experimentação individual, infundiram-nas com novos significados. Criaram uma nova linguagem visual, muito em desacordo com os tradicionais ideais de representação da academia. Paul Gauguin foi o primeiro a fugir da civilização moderna, escapando-se para o Taiti. Lá, o seu idioma pós-impressionista foi enriquecido pela estética indígena, criando uma fórmula que lhe traria muita polémica, mas também uma enorme fama póstuma. Picasso veio a seguir e durante o seu período proto-cubista desenvolveu um fascínio pelas máscaras africanas, as quais serviram de inspiração para a revolucionária pintura Les Demoiselles d’Avignon, criada em 1907.
Matisse, amigo de longa data e rival de Picasso, adoptou também influências primitivistas, ideias da arte africana, assim como as derivadas da cultura islâmica. As suas visitas a Marrocos e à Argélia marcaram um período excepcionalmente frutífero da sua carreira. Outro fauvista, André Derain, passou por inúmeras fases, e entre o seu estilo pontilhista e os seus idiomas cada vez mais classicistas, adoptou um olhar primitivista. O surrealismo, provavelmente o estilo mais eclético do século XX, também não foi imune a influências de todo o mundo. Formas simples, mas poderosas, sacadas directamente da África e da Oceânia, bem como fontes indianas, aparecem com destaque nas telas de Max Ernst das décadas de 1920 e 30, assim como nas obras do seu amigo André Breton, que encontrou inspiração não só nas artes tribais oceânica e africana – como se percebe na obra African Mask/Masque Africaine, de 1948 –, mas também na arte indígena norte-americana dos povos Hopi e Yup’ik.
Durante o resto do século XX, ainda que não fazendo parte da corrente dominante, a Arte Tribal continuou a ser uma fonte de inspiração para inúmeros artistas.»
Obras de Pablo Picasso e André Breton, inspiradas em peças rituais africanas.
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